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dela se espera. O vento é constituído de ar.
Ar que se desloca. Ar que venta. Imagine se
não fosse ar que se deslocasse por aí, mas
pequenos cacos de vidro. Ou rolos de
macarrão.
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A menina já entendeu, adverte a mãe
com ternura.
Pois bem. Se o cachorro da Érica é como
é, é porque é do jeitinho que tem que ser
para a sua atividade. E o nosso também. Se
são diferentes na sua constituição física é
porque o universo espera deles atividades
diferentes. Atividades que os poriam cada
um na sua em sintonia com a ordem
universal.
Ainda não entendi porque o Said é
como é. Insiste minha filha.
Said é como chamamos o nosso cão.
Tem alguma coisa que fica mais fácil de
fazer por parecer com uma salsicha? Pergun-
tou ela, tentando facilitar a minha vida.
Exatamente, bradei orgulhoso.
E o que é? Pergunta, ela curiosa.
Ora, Said, sendo como é, consegue entrar
em lugares, em buracos que outro cão, talvez
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como o da Érica, não consegue. Por isso
dizem que o Said é um cão de toca.
Mas aqui na nossa casa não tem nen-
huma toca. O que acontece quando o cão de
toca não tem uma toca para entrar? Pergunta
minha filha, com preocupação.
Ora, não havendo toca, sua existência se
dá fora de lugar. Ele está objetivamente des-
locado. Por isso, afetivamente, ele entristece.
Mamãe, mamãe. O Said é triste. Não
tem toca para ele aqui!
Peça ao seu pai para encontrar uma toca
para que ele possa entrar de vez em quando.
Sugere a mãe, num misto de ironia e pro-
vocação, próprias a matrimônios de mais de
uma década.
O exemplo do Said é oportuno. Mas o
nosso tema é a vida humana. Se o homem faz
parte do universo, ele também deve agir de
forma a justificar a especificidade de sua
natureza.
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Temos, todos nós, características comuns
que justificam uma zona prática comum.
Coincidência nas atividades. Mas temos tam-
bém traços singulares que nos levam a bus-
car uma especificidade de conduta.
O que há de comum em nós? Que traços
estão presentes em todos nós, e só em nós? E
o que esses traços podem ter a ver com
nossas opções de vida?
Querido leitor. Minha filha ocupou seu
lugar. Já estava com saudades das suas inter-
venções. Ora, temos braços em comum.
Pernas, olhos, axilas para os que não pas-
saram por amputação. Mas esses traços não
constituem nossa especificidade. Outros ani-
mais também contam com tudo isso para
viver. Nem todos. Conheci Cecília, a cobra
cega. Não tinha axilas. E não passou por
amputação.
Temos também razão e linguagem. Curi-
osamente, os gregos as denominavam, am-
bas, da mesma forma: logos. Consideravam
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essa a nossa especificidade. Pode-se discutir.
Afinal, como bem elocubra Unamuno, insu-
perável filósofo e provocador basco, quem
nos garante que um caranguejo não resolva
uma equação de segundo grau com mais rap-
idez que qualquer um de nós?
Voltemos aos gregos. O logos razão e
linguagem permite-nos concluir que somos
pensantes e sociais. A razão nos faculta
pensar, e a linguagem nos possibilita a
comunicação e a sociabilidade. Daí a famosa
definição proposta por Aristóteles: o homem
é animal político, dotado de razão. Assim, a
vida boa de qualquer um de nós deverá ser
considerada, necessariamente, a partir
desses dois traços. Por isso, seja lá o que for-
mos fazer da própria vida, a racionalidade e
a sociabilidade deverão ser decisivas nas
nossas escolhas.
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Assim, o homem é um animal cívico, mais
social do que as abelhas e outros animais
que vivem juntos. A natureza, que nada
faz em vão, concedeu apenas a ele o dom
da palavra (logos), que não devemos con-
fundir com o dom da voz. Este é apenas
expressão de sensações agradáveis ou de-
sagradáveis, de que os outros animais
são, como nós, capazes. A natureza deu-
lhes um órgão limitado a este único
efeito; nós, porém, temos a mais, senão o
conhecimento desenvolvido, pelo menos
o sentimento obscuro do bem e do mal,
do útil e do nocivo, do justo e do injusto,
objetos para os quais nos foi dado o órgão
da fala (ARISTÓTELES. Política).
Para além do que nos é essencial e,
portanto, comum um grande número de
particularidades também nos constituem.
Estas nos singularizam, nos discriminam.
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Elas também precisam ser consideradas na
hora de pensar na vida. Afinal, a maravilhosa
adequação entre o que somos e as atividades
que são as nossas devem concernir não só o
que temos de comum, como também o que
temos de particular.
Por isso, toda tentativa de propor soluções
existenciais padrão, aptas a garantir a felicid-
ade ou o sucesso de qualquer um, despertar-
ia a desconfiança absoluta dos pensadores
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